
AO SABOR DA CORRENTE
Por Ana Francisca Jones, Aurora Raposo, Joana Margarida Fialho, Margarida Rodrigues e Sofia Ah Chak
São seis da tarde e o barco “Filipa Irmão” está pronto para partir. Com um ar grave e sério do cansaço que a manhã de pesca lhe trouxe, o Mestre Rui Gonçalves volta esta tarde a fazer-se ao mar.
O começo
Põe-se ao leme e prepara-se para zarpar em direção à Comporta. Espera apanhar um bom lance de sardinhas.
Não era esta a vida que tinha traçado, mas a curiosidade por esta profissão e o encorajamento do seu ex-sogro levou-o até ao mar. Hoje é Mestre de uma embarcação, mas, como todos, teve de começar por aprender o básico: “Comecei por baixo porque eu não percebia rigorosamente nada daquilo. Tudo ali era estranho para mim”. Da estranheza passou a algo natural. Trabalhador e com o objetivo de ser o homem da ponte do leme foi progredindo até chegar onde está hoje. O Mestre tem de saber tudo o que acontece no barco e fazer qualquer tarefa. É ele quem assume o controle quando algo não está bem. A responsabilidade é muita, mas a vontade é ainda maior.
Hoje acompanhamos Rui, mas não é só ele que vive a vida do mar. Chico, Fernando, Leonel, e Bruno partilham a mesma paixão.
É com os olhos a brilhar, umedecidos pelas lágrimas que tenta esconder, que Francisco, nos conta como quis ser pescador desde que tem memória. Carinhosamente tratado por todos como Sr. Chico, começou a trabalhar aos 9 anos no anzol, mas cedo foi para o mar. Aos 14 anos subiu a bordo do Pérola de Sesimbra, que considera o seu berço, onde entrou como “moço” e saiu como Mestre. Muitos foram os barcos por onde andou até largar a agitação do mar devido à idade e a uma outra debilitação que foi apanhando pelo caminho.
Nascido e criado em Sesimbra, a sua vida foi passada no mar ou, quando era mais pequeno, à beira dele. Apesar de o pai não permitir que navegasse, os seus tios não deixaram de lhe passar o bichinho da pesca. Entre risos, relembra a primeira vez que navegou como se tivesse sido ontem - “Lembro-me perfeitamente de vomitar a noite toda. O cheiro do gasóleo era muito mau e os barcos da altura não eram como hoje. No convés, os homens lavavam-me a cara com baldes de água salgada. A minha mãe dizia-me muitas vezes que esta vida não era para mim e que eu não me ia dar bem com o mar. Mas eu nunca desisti.”
Fernando, com 70 anos, já largou a agitação dos dias no mar. Conheceu esta realidade por exigência do seu pai – com quem aos 8 anos de idade já ia pescar. Com a tristeza estampada no olhar, conta-nos que era o filho mais velho e que por isso teve de o fazer, uma vez que a sua mãe estava com problemas de cegueira. “Eu, que gostava de estudar, não pude fazê-lo. O meu irmão não queria estudar e a minha irmã também não. E eu que gostava não pude”, explica. “O meu irmão podia ser doutor e a minha irmã também se tivessem o meu pensamento. O meu irmão, ainda hoje, não sabe escrever. E eu tenho pena de não ter tido as possibilidades que eles tiveram”, conclui.
Por quadros e redes de pesca, o armazém de Leonel, vai contando a história da sua vida no mar, onde outrora foi feliz. Já reformado, vai ajudando o filho com o que pode. O negócio está fraco. Há contas por pagar e os lucros são baixos. Com um sorriso tímido e mãos trabalhadoras vai cosendo a rede que ainda lhe traz alguma esperança de que melhores dias virão.
Acompanhado pelo contramestre do barco Franklim, Rui explica que os equipamentos que tem a bordo são dos mais avançados que existem em Portugal.
A partir dos mesmos consegue identificar a possibilidade de existência de cardumes e que traineiras circulam na zona. “A “Mãe de Jesus” acabou de partir”, afirma. É o barco de Leonel.
São 19h, o mar está calmo e ao fundo avista-se Setúbal.

Foi para a pesca do bacalhau aos 18 anos para fugir à guerra. A bordo do navio Neptuno, com mais de 80 homens, pescava durante 6 meses na Terra Nova (Canadá). Seis meses cá, seis meses lá. “No início era uma vida ruim. Os pés estavam sempre gelados.” O pescador explica que às quatro da manhã se fazia ao mar em pequenos botes e só às duas da tarde, quando o navio içava uma bandeira preta, voltava. Com tantas horas seguidas passadas no mar, recorda um temporal que surpreendeu os pescadores: “Tive uma vez que vi-me em jeitos de ficar lá. Foi um temporal que caiu tipo tsunami. O capitão chamou a gente, içou a bandeira para virmos para bordo. Mas aquilo eram 80 botes…. Não podia ir toda a gente ao mesmo tempo. Nesse dia ficaram lá 3 pescadores. Durou aí meia hora. Se aquilo durasse mais morríamos todos. Os corpos nunca mais apareceram. Tive sorte”. O pescador lembra que estas alturas eram as mais difíceis: o luto pelos camaradas e o choque com a realidade de lhe poder acontecer o mesmo e não rever a família.
Nas situações mais complicadas a bordo, Rui concentra-se rapidamente naquilo que é preciso fazer. As redes têm o tamanho de um estádio de futebol e, por isso, são muito difíceis de manobrar. “Tudo (no barco) é tão grande que a força humana não serve para nada”.

De vez em quando, uma brisa arrefece a quente tarde que está na Doca dos Pescadores. O Rio Sado é o pano de fundo. Hoje confunde-se com a cor do céu.
Dois bancos almofadados, vários quilómetros de redes, linhas e agulhas são o material de Fernando e Bruno - dois mestres de terra. O trabalho é monótono, mas, entre cantorias e partilha de histórias, o tempo vai passando.

“Era mestre num barco que pescava navalhas. Chamava-se Três Filhos. Há 26 anos, já existiam os telemóveis, aqueles tijolos, e para ligarmos para Espanha tínhamos de ter aqueles códigos. O barco estava a cavar o fundo e eu disse para o meu camarada - o Silvestre - puxar a alavanca caso a cachorra batesse no fundo, enquanto eu estivesse a ligar para Espanha para perguntar se queriam mais marisco. Começo a ligar e só vejo o barco a começar a virar. Só tive tempo de chegar à ponte de lemo e saltar. Ficaram 6 homens debaixo de água e eu também só não fiquei porque saltei. Não via homem nenhum. Andava só à volta do barco à procura da malta. Lá via um a subir de cada vez. Eles estavam debaixo do barco e, conforme viam a luz do dia, subiam em direção ao Sol. Lá conseguimos salvar todos”. Esta foi a primeira vez que Fernando Mendes naufragou. Para este homem, o naufrágio é a coisa mais linda e, ao mesmo tempo, mais feia do mundo. Ainda assim, comparada a outras experiências que viveu, esta foi só uma pequena aventura num dia que podia ter sido igual a todos os outros.
Atualmente, passa os dias em terra a coser as redes que todos os dias precisam de passar pelas suas mãos e pelas de Bruno – um amigo que a arte das redes lhe deu.
Foi aos 22 anos que conheceu a vida no mar, mas quando aprendeu a trabalhar em terra – nas redes – nunca mais quis voltar – “O meu pai deixou-me esta vida e eu gostei”. Bruno cresceu rodeado pela vida simples de quem trabalha na pesca, no entanto confessa que nunca sentiu grande pressão por parte da família para embarcar pelo mesmo caminho. É com um enorme sorriso e certeza na voz que o jovem de 29 anos garante que permanecerá na reparação de redes para o resto da vida.
Quando questionado sobre aquilo que de melhor tem no seu trabalho, Bruno olha para Fernando. São mais que simples colegas – “Ele está sempre aqui comigo, é como se fosse meu pai. O meu pai trabalha nestas redes aqui ao lado e o meu segundo pai está aqui.”
São inseparáveis desde o primeiro dia em que se conheceram e é com os braços em volta um do outro que com um sorriso no rosto dizem: “Somos os melhores amigos!”
.jpeg)
A liberdade
Nem sempre os caminhos de Fernando e da pesca se cruzaram. Em 1962, embarcou para Angola para a Guerra do Ultramar. Aí, ainda ganhou dinheiro como jogador de futebol, chegando mesmo a assinar contrato com o Benfica de Cabinda – ganhava 5 contos por treino. “Eu e o guarda-redes éramos os únicos que ganhávamos dinheiro”, conta Fernando, enquanto faz uma viagem aos tempos de glória. Quando regressou, a sua realidade passou a ser uma plataforma de petróleo, mas rapidamente se fartou. “Eu sinto-me bem com o Sol por cima da minha cabeça. Não consigo viver com o céu tapado. O céu tapado é como uma casa em que não consigo estar fechado”, explica.
A pesca sempre permitiu que Fernando respirasse o ar que ele queria. Por isso, regressou à profissão da liberdade. Durante 4 anos, andou por Marrocos, pela Mauritânia e por outras regiões idênticas. “O que eu não ganhava aqui ganhava na pesca do alto. Eu queria um frigorífico para a minha mulher e não tinha de contar os tostões para o comprar. Eu comprava o frigorífico e uma máquina de lavar”, conta-nos. Fernando procurou sempre que nunca faltasse dinheiro em sua casa e sempre teve objetivos para a vida, como orgulhosamente nos explica. No entanto, admite que o dinheiro nunca o seduziu: “Desde que faças aquilo que gostas não há dinheiro que valha aquilo que fazes. Quando fazes uma coisa com gosto, tu não queres saber do dinheiro”.
O sentimento é transversal a todos. Também Chico diz sentir falta da vida que sempre levou e que hoje tem pena de não continuar. É no mar que se sente em liberdade e é com um sentimento de nostalgia que vê os barcos partir todas as noites.
Na viagem desde Sesimbra até à Comporta Rui confirma que há pouco peixe. Devido ao aquecimento da água e à mudança de marés, os cardumes procuraram águas mais profundas. Hoje poderá não ser um dia de sorte.
O Mestre fala com um brilho nos olhos das pessoas que lhe ensinaram tudo o que sabe hoje. Admira os homens que iam para o mar, guiando-se apenas pelas estrelas. “Eles não tinham nada. Eles olhavam para terra, viam dois pontos afastados, largavam a rede e sabiam que estavam num sítio onde a podiam largar”. Licenciado em engenharia não dispensa das tecnologias para o ajudar, contudo reconhece que o “conhecimento dos antigos” é importante e nunca deve ser descartado.
Chico aponta várias diferenças entre a pesca da sua altura e a de agora e relembra as dificuldades que existiam e que foram desaparecendo - “Na altura não havia a comunicação que há hoje e, quando acontecia alguma coisa, era um problema para conseguirmos avisar alguém. Antes trabalhávamos muito mais e a vida era muito dura.” Afirma que nem todos podem escolher esta profissão e que quem a escolhe tem de ter a noção de que “não há horários” - “Cheguei a estar 15 e 16 horas a bordo.”
Vida de pescador
Com uns trocos que juntou, Leonel, comprou por 250 contos (cerca de 1200 euros) o barco “Mãe de Jesus”, no qual foi muito feliz. Admite também ser “preciso um bocadinho de sorte”: “Uma vez não havia peixe nenhum no mar e eu carreguei o barco de peixe. Vendemos na altura uns 1000 e tal contos (cerca de 5000 euros)” – eram douradas, robalos. Foi na costa portuguesa, no Carvalhal.” A embarcação continua a fazer-se ao mar mas, hoje em dia, quem está à sua frente é o filho de Leonel, que acompanha o pai desde os 12 anos. Tal como o Mestre mudou, a onda de sorte também. “A pesca está muito pior do que estava antigamente. A pesca artesanal está no fundo, mesmo. Não há mão de obra. Não há salários fixos. O peixe para nós (pescadores) não vale nada. Estamos a vender carapaus a 0,50 cêntimos o quilo”. Leonel conta como o filho está desanimado e que a ajuda do Estado é pouca ou nenhuma. Só no ano passado, devido à pandemia, perdeu mais de 10.000 euros. Afirma que neste negócio o pescador é o que recebe menos e que a lota e os peixeiros acabam por ganhar tudo. “Às vezes pergunto-lhes: Vocês não têm vergonha? Vendem o peixe a 5 euros quando o compram por 0,50 cêntimos!”


A importância de conhecer o nosso mar e o que ele nos pode oferecer é crucial para os pescadores. O Mestre vê as quotas como uma forma de controlar o que se pesca e é a favor que elas existam, até porque “o pescador é o principal interessado de que o mar tenha peixe.” Mas, por outro lado, é insustentável não se poder pescar durante 5 ou 6 meses. Este ano foram “3 meses em que não houve ordenados. É essa a preocupação que o Estado tem de ter na gestão das quotas.”
“A gestão que é feita das quotas é incompetente”. Rui admite que os volumes de quotas não estão mal atribuídos, contudo, considera que o IPMA não tem capacidades para estudar o mar. “Ainda bem que Espanha tem capacidade de colocar os seus barcos na nossa costa para fazer esses rastreios. Nós não temos capacidade para fazer isso”. Sem qualquer incentivo ou formação, os mais jovens não se mostram interessados na vida do mar.
Do futuro, Leonel não sabe o que esperar. A única certeza que tem é que os que já nasceram ligados ao mar não o conseguem largar. A pesca ainda é uma profissão passada de geração em geração. Rui não sabe ainda o caminho que os filhos de 8 e 4 anos vão traçar. Porém, afirma que não os quer incentivar nem desincentivar a serem pescadores. Se o forem “que sejam bons e felizes”.
São 22h e Rui percebe que apesar de se ter feito ao mar, esta tarde não lançará as redes. Rumará ainda esta noite para a Caparica onde espera ter maior sorte.
Os dias maus no mar são normalmente associados a frustração, tristeza e desânimo, mas Rui decide olhar para esses dias de uma forma diferente: “Tenho de lidar com isto com naturalidade. Isto faz parte. E tem mesmo de ser com naturalidade porque se não, não se consegue estar à frente de um barco”. A verdade é que nada nem ninguém consegue controlar o mar e é este o pensamento que Rui leva quando entra a bordo. Confessa até que “muita gente devia de ir para o mar umas quantas vezes para aprender a aceitar as coisas” e a lidar melhor com aquilo que não correu tão bem. A vida passou a ser encarada de outra forma. O mar ensinou-lhe a relativizar os problemas, a aceitá-los e a resolvê-los. A entender o que realmente importa.